The Last Guardian: Ecos de uma Sony esquecida
- Rafael Esposito
- 4 de jun.
- 6 min de leitura
Lamentos sobre futuros que ficaram para trás

Me sinto estranho em falar de uma coisa que já deu errado. Várias coisas, na verdade. É em meio a escombros e ruínas assombradas que a história de The Last Guardian se desenrola, tanto no mundo do jogo quanto no nosso, o real. Falar desse jogo é falar de uma luta já perdida.
Mas antes disso, um preâmbulo.
Eu comprei um Playstation 3 por causa de dois vultos. Um era o espectro que já se chamou Final Fantasy Versus XIII. O outro era o esperado terceiro ato de Fumito Ueda e seu Team Ico: The Last Guardian. Após o sumiço de ambos os projetos, me contentei com uma enxurrada de jogos de ação-aventura da moda, a maioria deles um tanto mornos. Mas o desejo permanecia.
O PS3, que Deus o tenha, não dava conta das ambições do jogo, que prometia nos emocionar com a história muda de um garoto e seu monstro. The Last Guardian, ao que parece, só não foi cancelado graças à paciência e clemência de Shuhei Yoshida (então presidente da Sony Interactive) que acreditava na pureza da visão de Ueda e equipe. A promessa foi adiada, e os gamers teriam de esperar pela chegada do PS4.
Mas quando o jogo finalmente viu a luz do dia, em 2016, o mundo já havia seguido seu rumo, e a reação ao seu lançamento foi tumultuosa: Trico, a criatura central do jogo, protagonizou também a raiva, a frustração e a ironia de Youtubers e críticos da época. Afinal, apesar de fofo e precioso, Trico é dotado de todas as manias e irritações de um pet temperamental e real.
O bicho se distrai, obedece quando quer e responde a comandos e maneirismos muito específicos. Já o garoto que o jogador controla é um pivete franzino, que corre aos trancos e barrancos, escorrega e se capota com o vigor para se estropiar que só uma criança tem.
Para muitos, isso representa uma certa quebra contratual. Sendo claro: não é pecado nem falha pessoal não gostar do pacote que The Last Guardian oferece, e a rejeição ao jogo não diz nada sobre o gosto ou a inteligência de seus detratores (um grupo que inclui críticos que são referências para mim). Também é possível que alguns elementos do game não sejam de todo intencionais, enriquecendo a experiência por mero acidente.
Mas é fato que jogos modernos tendem a favorecer fantasias de poder e dominação, que podem sim desafiar e frustrar, mas sempre com a autonomia do jogador em primeiro lugar. Todo input deve ser deliciosamente satisfatório e responsivo, as opções de romance devem se jogar aos nossos braços assim que pedirmos e se perder em meio a objetivos vagos é crime imperdoável. Esquemas de controles, interfaces, estruturas e ritmos se unem para responder às demandas desse deus chamado Escapismo. O videogame deve ser exclusivamente algo que permita desligar o cérebro, derreter no sofá e esquecer os problemas do dia-a-dia.
The Last Guardian, por outro lado, nada na direção contrária ao insistir na sua fricção. Ao fazer você pausar, se perguntar o que precisa ser feito e se irritar com as imposições do jogo, o jogo quebra o feitiço da distração e obriga o jogador a negociar com as pirraças de Trico e as limitações físicas do menino.

Na época, o frisson em torno de The Last Guardian e a saga tortuosa até seu lançamento me fizeram desconsiderá-lo como fruto de outro tempo, quando éramos mais tolerantes a esquemas de controles ruins e objetivos nebulosos. Hoje, minha percepção é outra.
Talvez eu esteja em uma posição privilegiada para engajar com a premissa central -- em comparação a minha vira-lata birrenta, reativa e amorosa, o Trico é um santo. É significativo que a comparação sequer exista: um artifício que equivale a um Tamagotchi Premium Plus conseguiu evocar a minha experiência de adoção com uma verossimilitude inesperada.
Os primeiros dias são complicados. O bicho peludo na sua sala não sabe qual é a sua e o que você quer -- especialmente quando carregam traumas silenciosos, mas estampados em cada movimento e reação. Mesmo nesses casos mais difíceis, tem algo de intuitivo nessa relação que floresce entre um novo tutor e sua criatura. Você aprende linguagens que não são a sua, e ela observa cada ato seu, absorvendo sua rotina e suas manias.
Eu sabia que gostaria de Trico, mas é chocante sentir esse entendimento intuitivo ser cultivado, puzzle por puzzle, em um espaço virtual. É estranho sentir que está vindo a conhecer um ser que não existe, um mero truque de código.
Certamente, essa dinâmica é mais ilusão do jogo do que algo realmente cultivado, que seja mérito do jogador e de seu Tamagotchi, mas é notório que a ilusão sequer exista. Cada obstáculo que o jogo coloca em seu caminho representa um exercício de comunicação, gamificando a relação entre garoto e criatura de uma forma muito natural e sutil.
Outra coisa: a direção de arte do jogo é, como de costume, espetacular. Digo o mesmo sobre a trilha sonora e a direção de cutscenes; essas são as áreas onde o Team Ico dá aulas desde sempre, evocando atmosferas surreais, serenas e com o carimbo inconfundível do estúdio. A textura de tudo lembra outras pérolas estranhas, como Panzer Dragoon.

The Last Guardian, então, é um jogo deslocado, desabrigado em seu próprio tempo. Até a versão da Sony onde jogos desse tipo eram feitos aos montes também já dava passos largos para se tornar um espectro de outro tipo.
A Sony Computer Entertainment dos anos 90 (formada por ex-membros da Sony Music) era uma tastemaker ousada e confiante, atirando com precisão assustadora para todas as três dimensões. Jogos de ritmo feitos por titãs da música japonesa, jogos de puzzle pensados por Professores da Universidade de Tóquio, o primeiro simulador realista de corridas, favorito de tiozões mundo afora -- todo tipo de experimentação e expansão era permitida no playground Sonysta. Conforme a fronteira da terceira dimensão era desbravada, novas estruturas e formas de interação surgiam com um volume impressionante.
A Nintendo, em contraste, representava uma excelência mais tradicional e formal, apelando para um público já conquistado (e a Sega, para o nosso pesar, se afogava). Hoje, a Sony moderna tem um quê de Nintendo dos anos 90: é a excelência tradicional personificada, só que sua tradição é outra.
Se a SCE noventista era como um selo musical conceitual, identificando e financiando novos talentos promissores, sua encarnação contemporânea lembra a franquia John Wick: produções de massa excepcionalmente competentes e bem-dirigidas, quase todas similares entre si. Blockbusters espalhafatosos com um verniz de prestígio, polidos e fáceis de digerir.
(John Wick também é protagonizado por um homem branco melancólico de meia idade. A piada está aí, faça quem quiser.)
É o reflexo de uma indústria envelhecida (ou amadurecida, no vocabulário para-humano de investidores e acionistas). Os projetos são caros demais, o público alvo envelheceu e cristalizou seus gostos e já não se enxerga mais espaço para expansão e crescimento -- logo, não há porque tentar coisas novas.

Já sabemos como controlar uma câmera em terceira pessoa (e sabemos que câmeras fixas “não prestam”), sabemos expor detalhes narrativos dinamicamente, sabemos esconder telas de carregamento por trás de corredores estreitos e como manter o jogador moderno em transe, horas a fio. Sabemos que remasters e remakes são o único caminho para tornar experiências antigas palatáveis e o que é velho há de ser descartado. O paladar do gamer moderno, logo, é cada vez mais restrito e fechado.
Jogos modernos são, sim, infinitamente mais jogáveis e palatáveis em média do que jogos antigos -- a barreira de entrada é real. Mas há também uma alergia generalizada à fricção que faz as pessoas torcerem o nariz para ideias que ainda tem valor, ou ignorarem experiências que exigem uma recalibração mental, mas recompensam generosamente o jogador que se abrir a elas.
Os controles escorregadios e imprecisos de The Last Guardian passam longe de serem essenciais, por mais que não haja nada no jogo que exija precisão e urgência por parte dos jogadores. Mas o ritmo próprio que Trico impõe ao longo da jornada, os ruídos de comunicação e os momentos de quebrar a cabeça para progredir são, sim, inegociáveis para a experiência que eu tive com o jogo. Sorte a minha.
Grande conteúdo Rafa! Também sou da turma que The Last Guardian! Esse jogo é maravilhoso, e ele é assim exatamente pelos fatores que foi criticado na sua época!!
Enfim, parabéns pelo texto