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Pivot of Hearts nos desafia a não deixar a vida passar

Jogo nacional agrada com personagens carismáticos e narrativa envolvente.



A primeira coisa que se vê na tela ao dar start em Pivot of Hearts são os customários logos de órgãos públicos que ajudaram a financiar o jogo; um lembrete reconfortante de que algum incentivo à cultura ainda existe nesse país. 


A segunda coisa é uma excelente abertura ao melhor estilo anime slice of life anos 90, sobreposta à paisagens familiares para qualquer pessoa que já tenha pisado em São Paulo, além de personagens que parecem ter saído diretamente de Sailor Moon e vocais em japonês.


Em seguida, uma charmosa sequência onde acompanhamos uma batalha de RPG, onde bravos guerreiros enfrentam um monstro slime. Um gringo lembraria, com razão, de Dragon Quest. Mas nós, tupiniquins, sabemos bem que o jogo homenageado é Ragnarok Online. Até agora, uma experiência com cara de Brasil.


Pivot of Hearts, uma visual novel de romance da Dragonroll Studio, mantém essa energia distintamente nacional até o fim, sem nunca apelar para vira-latismos ou caricaturas carentes, para o proverbial inglês ver. 



Como resultado, o jogo é uma janela real e verossímil para a cultura geek paulistana, banhado por lindas ilustrações da cidade, festividades e elementos culturais e de cultura pop trabalhados de forma espontânea e uma trilha sonora que mescla a bossa nova ao chiptune.


A história do jogo é simples: Wen, um jovem programador de jogos, reencontra velhas amizades (incluindo uma pessoa especialmente importante para ele) após um período no qual, por motivos inicialmente vagos, ele se afundou no seu trampo e se isolou de seus antigos círculos sociais. Em paralelo, um novo colega de trabalho chama a atenção do rapaz, que mergulha em um turbilhão de sentimentos confusos.


Como Visual Novel, nosso modo de interação se resume a cliques e muita leitura. É um mérito imenso do jogo, portanto, que a experiência do usuário seja tão bem considerada e calibrada. A velocidade do texto, os efeitos sonoros e os menus passam a sensação de se estar usando um software premium.  


As artes em 2D são constantemente lindas, e os designs de personagens são igualmente vibrantes. O jogo faz o autosave a cada linha de diálogo e oferece um dicionário dinâmico para estrangeirismos e regionalismos. Além disso, seu idioma pode ser alterado a qualquer momento, sem perda de progresso. 


Mais importante do que isso, porém, é o que a narrativa entrega. Com o ritmo e a textura de um diário interativo, Pivot of Hearts é carregado por seu elenco. Wen é uma pessoa excepcional: gentil, esforçado, sempre considerando as necessidades alheias, mesmo quando suas próprias expectativas são frustradas. Seus medos e inseguranças são intensamente humanos, e são frutos de seu desejo de ser uma pessoa melhor. 


E como é de se esperar, o protagonista atrai pessoas igualmente interessantes. Cauã, o novo artista do estúdio onde Wen trabalha, e Etsuko, a amiga de infância, são pessoas encantadoras, inteligentes e maduras. O jogo permite que essas relações respirem, crescendo e se desenvolvendo com naturalidade.



Isso é só um exemplo do forte ritmo narrativo da história, que entrega revelações e reviravoltas (especialmente sobre o passado desses personagens e os traumas de Wen) com uma constância e estrutura muito agradáveis. 


Ao longo da história, vemos sequências de sonhos que bebem da fonte inesgotável de animes de garotas mágicas, mechas e kaijus. Elas fazem um bom trabalho de quebrar a monotonia agradável da rotina de Wen, além de explorar os sentimentos mais enterrados e reprimidos do rapaz e oferecer boas risadas.


Gostei muito de acompanhar as minúcias e pequenos estresses do dia-a-dia de um desenvolvedor de jogos, e a equipe do estúdio de Wen recebe tanto carinho e atenção do roteiro quanto o grupo de RPG que domina sua vida social. É o bastante para nos fazer vibrar pelas pequenas conquistas e investir emocionalmente nas trajetórias dessas pessoas, assim como o protagonista faz.


O jogo também traz um sistema de cartas de baralho, cada uma representando uma virtude que Wen pode demonstrar (lógica, emoção, persistência metódica, ímpeto). Nada particularmente profundo, mas traz um elemento bem-vindo de gamificação à narrativa, recompensando escolhas específicas e potencialmente limitando o jogador que abusar de um atributo específico na hora de escolher seus diálogos.


Em contrapartida, houveram momentos em que a enxurrada de piadas e referências geek doeram aos olhos. São sempre apropriadas, dado os interesses dos personagens, mas nem sempre são inspiradas ou engraçadas. Se você não é do meio, isso pode criar uma barreira entre jogador e elenco. O roteiro do jogo compensa com uma autenticidade incessante; é uma narrativa de coração aberto e com forte visão autoral.


Nos materiais promocionais de Pivot of Hearts, a não-monogamia saudável é apresentada como pilar central da história. Wen não é familiarizado com essa dinâmica, permitindo a jogadores que nunca foram expostos a essa ideia empatizar com suas experiências.


Essa não-monogamia não é um arranjo do qual se deve concordar ou discordar. Ao longo dos capítulos do jogo, vemos pessoas honestas, gentis e empáticas se relacionando de forma saudável, priorizando o bem-estar de todos os envolvidos. 



Por isso, a abordagem aqui não parece especialmente panfletária, nem necessariamente clama uma superioridade moral -- algo que infelizmente já testemunhei na vida real. Aqui, vemos simplesmente pessoas que encontraram arranjos que fogem das amarras da nossa sociedade patriarcal. Em Pivot of Hearts, tudo é questão de entender o seu próprio coração.


Uma observação é que, para ilustrar seus argumentos centrais, o jogo faz um contraste entre um namoro problemático da adolescência de Wen, que sufocou sua vida social e gerou traumas duradouros, e a possibilidade de uma relação não-monogâmica no futuro.


É uma decisão imperfeita, pois apresenta uma vivência anedótica como profecia;  um relacionamento monogâmico não está fadado a cair na armadilha do ciúme e da falta de confiança, tal como um namoro não-mono pode ser intensamente problemático. Como o próprio jogo argumenta, bons relacionamentos são construídos com diálogo, respeito e inteligência emocional. 


Talvez seja uma leitura pouco caridosa da intenção do jogo, já que esse passado de Wen ajuda-o a entender o valor de uma ideologia que rejeita a posse e o ego como elementos centrais para um namoro. Foi um prazer acompanhá-lo nessa jornada de cura e redescobrimento, repleta de personalidades queridas, turbulências emocionais e triunfos cotidianos. 



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